Numa tarde fria Elena dormia, ela que fora bela. Sua natureza moldada, preparada desde menina, não consternava mesmo numa vida dura. De um homem que lhe açoitava em uma atmosfera pesada. Como uma vadia, nua numa noite fria ele chegava e se desfazia tocando-a pelas costas. Sabia ela que seu legado lhe opusera, ser apenas a pequena das grandes vontades, imensas em maldade de quem a violentava e dizia amava. Sonhava ela numa vida que lhe daria espaço para dormir e fugir da agonia de amar quem não amava. Entretanto ela vivia na angústia de se entregar e chegar à dor. Numa noite, carregando as feridas, partiu em loucura desbravando a madrugada, com suas duas filhas e mais nada. Levava apenas a coragem de Quimera, podendo correr e seguir seu caminho. Mas Elena não sabia que apenas despertara a fera.
O fogo saia-lhe pelas narinas. Sua educação ensinara-lhe que tudo estava sob suas ordens. E uma desordenada, Elena, partira com sua prole. Quem era ela se não uma transtornada, como podia desafiar a quem lhe conduzia.
Os olhos vermelhos percorriam o apartamento. Que de tão vazio refletia a solidão de uma noite fria. Mas Rogério sabia, onde encontrar quem fugia. Partiu numa tarde fria, seguindo o rastro daquela vadia. Que deveria ficar em seu canto. Apanhando o tanto que merecia, pois se seu desejo é bater, seria ela a apanhar.
O carro parou na beira da calçada. Para sua surpresa Elena se encontrava sozinha. As crianças, naquela guerra de nervos, ficara escondidas com a mãe querida.
Rogério blasfemava. Sua língua navegava nas espumas que surgiam em sua boca suja. O fogo em suas narinas esquentava o ar. Sua face se contorcia deixando clara sua fisionomia. Drakôn, escandalosamente assustador. Escamas tomavam o seu corpo. De sua coluna erguia-se ossos pontiagudos. Seus dentes encontravam-se lançados para fora da boca. Em grandes passadas a fera se aproximava. Elena recuava, tentava compreender a situação. Drakôn assumia todo o controle. Ergueu suas patas de longas unhas na intenção de desferir um forte golpe. Elena estava pronta para ser novamente açoitada.
No céu um sol forte deixava crer, que uma longa tarde queimaria a todos até o anoitecer. No chão um embate se pronunciava. Num grande gramado a morte se anunciava. Entre um carro e uma goiabeira, uma fera que em muitos momentos tombava e dominava sem oferecer nada, se não noites frias violentas, ou camas vazias, desalentos para quem lhe obedecia.
Um golpe que acerta o rosto rosado, deixa de imediato arranhões profundos em demasia. Com a face currada o corpo cansado cai ao chão. A fera avança na intenção de atingir sua presa pela última vez.
Quimera levanta, em forma de leão de duas cabeças. Seus olhos em luz como fogo afastam, quem se vê intimidado pelo súbito ódio que se anuncia. Num lance, em desespero se lança nas costas da besta. Afastando-se das vértebras expostas em lança, abaixando-se dos golpes de unhas afiadas lança uma mordida no pescoço do Dragão, que se dobra em fúria e arremessa Quimera de encontro à goiabeira. Os frutos da planta precipitam-se na cabeça de Quimera, que parece se alimentar da vida que lhe toca e grita para o mundo como se em um segundo tivesse que viver todos os anos que lhe restam. Drakôn percebe uma oportunidade, mas ao olhar seu ombro percebe o vermelho de sua maldade. Cambaleia , tropeça e Quimera se levanta, voa e pousa nas costas do dragão. Seus dentes afiados fincam no pescoço da besta e arranca-lhe um pedaço. O sangue jorra tarde adentro, deixando o gramado verde avermelhado. Drakôn tomba, suas presas, chifres tocam o chão e Quimera corre, sobe nas costas da besta, grita quando percebe um último suspiro.
Sirenes são ouvidas à distância. Elena caminha até a estrada. Senta e aguarda seu destino. Nada será fácil em seu futuro, mas de certo não será serva, escrava espancada de uma fera e então somente ela sem se não ou talvez será novamente bela.